Foi há 20 anos que o músico Luís Simões criou o seu projeto de rock psicadélico. Saturnia é um trabalho solitário, experimental e de auto-reconhecimento que celebra este ano duas décadas de existência e com um novo registo de originais.The Real High é o seu sexto disco e que Luís admite ser um álbum que tem tudo para agradar a “qualquer neófito do género, mas também ao melómano mais generalista”.

Por celebrar 20 anos de existência de Saturnia, The Real High torna-se num disco um bocadinho mais especial?

Todos os discos acabam por ser especiais, mas este surge noutra altura da minha existência e na existência de Saturnia.
É um disco onde acho que atingi coisas que nunca atingi noutros, nomeadamente alguns alvos para os quais eu estava a apontar já desde os anos 1990. Por exemplo: o facto de conseguir ter feito um disco que pode ser apreciado por qualquer neófito do género mas também pelo melómano mais generalista. E isso é uma grande vitória.

A tua experiência é o principal motivo para teres conseguido chegar agora a essa conquista?

Naturalmente que o fator cronológico tem influência. Este feeling, esta sensação, esta alegria,
é algo que tenho vindo a sentir ao longo dos outros álbuns. Mas tem sido progressivo.
Só que como tenho demorado muito tempo entre álbuns, esse sentido de realização acaba por se desenvolver
num espaço de tempo muito mais longo. Mas não quero que entendas com isso que estou insatisfeito com os álbuns anteriores.
Penso que já em boa parte consegui isso no álbum anterior, de 2012, o a O a (alpha Omega alpha).
Este é um disco muito mais direto, pelo menos tanto quanto pode ser assim um disco de Saturnia,
e isso é um aspeto que me deixa muito feliz em relação à minha criação.
Tens vindo a trabalhar muito, ao longo dos anos, no universo do psicadelismo.
Mas este The Real High parece que acaba por ter uma tonalidade mais pop,ou, pelo menos, com uma outra facilidade de audição.

Talvez. Eu tentei fazer sempre o mesmo em todos os discos: as melhores peças,
os melhores refrões e os melhores instrumentais possíveis. Uma coisa que consegui fazer neste,
e que creio que já tinha conseguido fazer no Muzak, foi cingir-me às ideias nucleares dos temas,
desenvolver qb as partes de canções e depois descontrair mais no tema instrumental e nas secções instrumentais,
para manter um equilíbrio entre a ordem e o caos. O facto de me ter agarrado com unhas e dentes às ideias mais centrais,
originaram isso que dizes: é uma mensagem limpa e com muito pouco ruído. Quando se produz música psicadélica,
tende a ter algum tipo de barroquismo e um excesso de camadas sónicas. Tentei não encher demasiado e acho que consegui um equilíbrio muito razoável.
Vamos ver como é que este disco subsiste no tempo.

Há uma marca transversal no teu trabalho: a mistura do rock psicadélico com ambientes mais étnicos,
com o uso de sitar e outros sons que nos levam até à zona do Médio Oriente.

Quem nos ouvir há-de pensar que Saturnia é uma coisa meio exótica (risos).
Os Saturnia, tal como o rock progressivo ou psicadélico, são um artista de fusão.
É uma ideia que bebe de várias influências dentro de estilos musicais, dentro da música popular,
mas também dentro da música erudita – indiana, por exemplo – mas também da música clássica – talvez menos evidente –
de várias formas de rock e da música eletrónica. Acaba por ser o depurar de um trabalho de equilibro entre tudo isso.
De facto a música clássica indiana e a sitar é apenas uma das fontes onde vou beber habitualmente e constituem um bocado a miríade do diamante.
O teu trabalho de composição é muito íntimo e pessoal. Também de autodescoberta?

Absolutamente: musical e pessoal, ainda que as duas estejam muito de mãos dadas, estou nisto há alguns anos,
mas sinto-me a evoluir enquanto artista enquanto indivíduo. Os Saturnia são um trabalho essencialmente solitário.
Quando comecei, nos anos 1990, o meu objetivo era criar uma espécie de comunidade artística multimédia (vídeo, performance, luzes e música).
Mas rapidamente percebi que era algo quimérico, e entre 1996 e 1999 decidi então fazer algo que tivesse exclusivamente ligado à música,
que é a minha área assumida. Fiz o primeiro disco, em 1999, ainda com o Eduardo Vasconcelos, mas desenvolvi o meu trabalho daí para a frente mais sozinho,
farto das pessoas, farto de trabalhar com músicos, mas também porque comecei a estar num ambiente eletrónico onde podia fazer muita coisa só por mim.
Mas dá muito trabalho: gravar uma ideia base, na secção rítmica, e fazer improvisações sobre isso. A partir daí, começo a escolher, a estruturar,
faço letras, construo um solo de guitarras, teclas, num parque ambiental e deixo marinar. Acho que é por isso que os discos de Saturnia são tão espaçados.

Para ganharem corpo por si próprios?

Absolutamente. Eu sei que estou a lidar com material de Saturnia quando percebo que os temas já estão assombrados e a tomar vida própria,
porque são eles que me dizem o que tenho de fazer a seguir.

E o lado ao vivo dos Saturnia? É complicado para ti partilhar este universo tão íntimo e pessoal com outras pessoas?

Por vezes é assustador. Mas tenho a sorte de conhecer duas ou três pessoas, que me são muito próximas, pessoal e musicalmente,
com os quais posso partilhar, que gostam de Saturnia, que compreendem as minhas idiossincrasias, tiques de personalidade e crises temperamentais.
Hoje em dia trabalho com o Tiago Marques, nas teclas, e com o André Silva na bateria. São músicos muito competentes e eficientes que conseguem traduzir
muito bem aquilo que fiz nos discos.
E concertos?

Desde que o disco saiu ainda não fizemos nada. Mas estou com muita vontade de tocar ao vivo, com algumas coisas planeadas por cá e também uma pequena tournée por fora –
envolvido no pacote da editora com quem trabalho, a Elektrohasch. O meu editor também me “chateia” frequentemente por causa disso, porque sabe que eu deveria tocar mais ao vivo,
construindo um trabalho de continuidade, mas que não posso por razões de natureza pessoal outras de natureza artística, não tenho conseguido fazer.
As aparições de Saturnia também acabam por ser esporádicas – ainda que a minha mente esteja sempre em Saturnia –
mas quem quiser ver um concerto é bom aproveitar quando há porque podem passar mais seis anos sem se fazer outro

ANTENA3  02/11/2016