O regresso de Saturno
2018-05-05, Musicbox, Lisboa

O psicadelismo na música encontra-se espalhado como uma camada decorativa que cobre inúmeros bolos sortidos. Na sua forma mais pura, o melhor exemplo será porventura Saturnia, projecto de Luís Simões. “The Seance Tapes”, o álbum que esteve em apresentação no MusicBox, pode ser considerado um resumo da matéria dada.
O universo musical do pop /rock, tal como o entendemos hoje em dia, nasceu e cresceu como um reflexo e uma expressão artística das imensas transformações político-sociais que o mundo sofreu no seguimento do caos das grandes guerras do século XX. O nível e a escala de violência e destruição que o mundo sofreu operaram uma mudança de paradigma que procedeu a um corte com estruturas que se mantinham há séculos de pedra e cal.

UMA INTRODUÇÃO HISTÓRICA
Pode-se dizer que a música apanhou, a partir da década de 50, um comboio de transformação no qual outras artes já haviam embarcado desde o início do século. O folk colide com o clássico, o popular com o vanguardista, o branco com o negro, combinações improváveis de instrumentos e estilos ditam que, em meados dos anos sessenta, os adolescentes estão a ouvir nos seus gira-discos sons radicalmente diferentes do que os seus irmãos mais velhos teriam escutado uns meros dez anos antes. O chamado rock psicadélico é talvez a afirmação mais contundente desta metamorfose que de silenciosa teve pouco, foi até bastante audível!

O cruzamento entre os combos tradicionais de guitarra, baixo e bateria com os ambientes criados por toda uma nova leva de tecnologia de sintetizadores (a chamada electrónica começa a nascer aqui), o desejo de criação de espaços emocionais na música que fossem além de um bater de pé e girar de anca, a descoberta de toda a riqueza da música indiana com escalas e harmonias que se regem por princípios completamente diferentes das europeias. Tudo isso alimentado pelas propriedades dissolutivas das novas substâncias enteogénicas, com a sua capacidade de dissolver limites e fronteiras. Daqui derivaram o rock progressivo, a electrónica ambiental de Eno e Fripp, o movimento rave, etc.

Portugal teve (à sua escala menor e mais condicionada, como é apanágio de uma nação que vivia na contramão do mundo) os seus próprios laivos psicadélicos no Quarteto 1111, nos Petrus Castrus e Tantra, por exemplo. Hoje em dia que a fusão e a remistura se tornaram de tal maneira o zeitgeist operativo da condição musical, que é se calhar quase impossível ainda falar de géneros, o psicadelismo na música encontra-se espalhado como uma camada decorativa que cobre inúmeros bolos sortidos. Na sua forma mais pura, o melhor exemplo será porventura Saturnia, projecto de Luís Simões. “The Seance Tapes”, o álbum que esteve em apresentação no MusicBox, pode ser considerado um resumo da matéria dada.

Repescando músicas dos 6 álbuns anteriores (e permitindo assim uma pequena viagem no tempo desde o fim dos anos noventa até ao presente momento), acaba por ele próprio ser um híbrido de álbum ao vivo com best of. Apresentando-se em palco num power trio de guitarra (ocasionalmente sitar) bateria e sintetizador, Saturnia transportou o público não tanto para a década onde aquelas sonoridades nasceram e tiveram a sua expressão mais definitiva, mas para o espaço intemporal onde a música se procura libertar de modismos e contextualização, existindo enquanto expressão intemporal de si própria.

OS TEMAS EM CONCERTO
“Chrysalis” é um groove dançante com um riff melódico que evoca claramente os rendilhados da música indiana. As vocalizações estão presentes, mas, nesta como noutras canções, elas não pretendem ser a tónica dominante, surgindo como mais uma camada sonora atmosférica. “Infinite Chord” e “A Burnt Offering” são temas mais recentes e a sua contemporaneidade faz-se notar. O primeiro soou com qualquer coisa de Drum n’ Bass na sua batida, desregulado com um pulsar cósmico a vibrar por entre o ritmos, o segundo mais melódico, com a voz a assumir não só o protagonismo, mas a trazer ao de cima uma melancolia que estando talvez presente nos vários temas, é aqui mais visível.

“I am Utopia” é um tema mais cavalgante, quase um épico contido, algo à maneira do território emocional que uns Muse percorrem, mas sem uma noção tão inflacionada de si próprio. Em “The Real High” a guitarra dá lugar à sitar (e à tampura samplada a marcar o tempo): é talvez o tema mais Harrisoniano, embora em termos de som as harmonias da sitar tenham sido demasiado abafadas pelos restantes instrumentos, como se estes estivessem a competir contra ele e não a suportá-lo. “Hydrophonic Garden” é exactamente o que o nome sugere: um jardim aquoso de puro ambientalismo, uma atmosfera uterina e vegetal para baixar o ritmo da viagem musical. “Still Life” contribui igualmente para o efeito chill out, pois embora mais ritmada, existe igualmente num qualquer espaço mais primordial da consciência humana.

Saturnia não é propriamente música para as massas, mas ainda assim encontra o equilíbrio certo de melodia e ritmo que o resgata sempre da tentação de ser a enorme masturbação sonora em que este género musical tende a navegar.

“Mindrama” tem uma toada mais obsessiva, reflectindo talvez o ruído incessante e neurótico que a mente produz na sua capacidade infinita de produzir pensamentos. “Gemini” tem uma atmosfera Floydiana, dançando à volta do ritmo hipnotizante dos sintetizadores, uma viagem pelo espaço externo e por espaços internos, o tipo de som que acompanharia Major Tom após este se libertar da sua cápsula terrestre. Com “The Twilight Bong” regressa o sitar, e desta vez ele encontra-se mais enquadrado na composição. O ritmo quase marcial da bateria casa de forma surpreendente com a melodia do sitar, resultando no tema com mais groove do concerto, tal como sucede na audição do álbum.

“Cosmonication” resumiu a viagem ao mesmo tempo que a leva ao seu apogeu, directo ao coração de uma qualquer estrela pulsante do outro lado do cosmos, e “Sunflower” é a aterrizagem discreta de volta à terra. Saturnia não é propriamente música para as massas, mas ainda assim encontra o equilíbrio certo de melodia e ritmo que o resgata sempre da tentação de ser a enorme masturbação sonora em que este género musical tende a navegar. Será talvez interessante de futuro ver uma maior aproximação ao universo musical português tradicional, pois este é um casamento que tendo sido algumas vezes aflorado, nunca foi realmente consumado, e poderá abrir portas muito promissoras para o futuro deste projecto.

CARLOS GARCIA  Arte Sonora 8-8-2018